Muito se fala sobre cidadania, participação popular, democracia e sua aplicação cotidiana, mas você sabe o significado de cada um desses conceitos? Sabia que a democracia participativa pode ser exercida por meio de um sorteio? E que dessa forma, o povo pode ser colocado no centro da tomada de decisões que impactam a nossa vida em sociedade?
Existe uma correlação direta, entre esses conceitos e o sorteio cívico. Este pode ser usado como procedimento para que sejam tomadas decisões capazes de impactar, inclusive, a elaboração de políticas públicas. É sobre isso que vamos te contar neste artigo.
O que é democracia?
É comum ouvir a palavra democracia diariamente. Nas notícias, em capas de livros, na TV, na internet e até mesmo em conversas entre amigos…
O conceito é denso, complexo e com várias nuances históricas. A origem da palavra democracia vem da Grécia Antiga. Dividida em duas partes, tem o seguinte significado: dêmos – povo – e krátos – com sentido de poder. Segundo Eduardo Cambi, “a democracia não é um conceito pronto nem um valor imutável. É resultado de uma prática social e histórica em permanente transformação”.
Já para Antônio Teixeira Fernandes, a democracia se define como “um regime político que, sendo poder do povo exercido pelo povo, nunca atinge a sua total realização”. O autor defende que o sistema político, enquanto regime, pode ser democrático. No entanto, não leva, necessariamente, a que a sociedade seja, também ela, democrática. Sem uma correta definição das “regras do jogo”, o diálogo político, na relação cidadão-governo, fica prejudicado. Fernandes afirma que “a democracia é poder do povo partilhado entre o povo”. Ou seja, não é possível existir democracia sem participação direta do povo.
Assim, a democracia deve garantir o direito de participação na tomada de decisão realizada pelo Estado. É o exercício do poder político feito por nós. O povo, representado por você, seus parentes, amigos e desconhecidos, deve ter o direito de conhecer e ser parte da criação de soluções para problemas de interesse público. Uma das formas de exercer esse direito é votando em nossos representantes.
Crise democrática
Mas a democracia representativa, centrada nas eleições, apresenta evidentes sinais de crise. O artigo Democracia por sorteio: por que pode dar certo apresenta alguns indicadores desse cenário:
- Significativa abstenção eleitoral
- Baixa identificação do cidadão com os partidos políticos tradicionais
- Baixa confiança da população nas instituições democráticas
- Atual polarização política
- Surgimento de grupos e partidos políticos de viés autoritário
As causas dessa crise são várias. A classe política, de uma maneira geral, está cada vez mais afastada da realidade de seus eleitores. Observa-se também a manutenção de uma elite partidária, por várias gerações, no poder, assegurando interesses muitas vezes contraditórios à causa pública e democrática. E o voto, de quatro em quatro anos, como única participação popular nos rumos políticos de um país, está longe de representar os anseios e as escolhas conscientes da sociedade sobre seu presente e, principalmente, seu futuro.
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A democracia, entendida aqui como um processo em constante aperfeiçoamento, é, até ao momento, a forma política de governo que mais confere autonomia ao cidadão. Nesse sentido, as várias formas de democracia são determinantes para que se entenda o papel de cada um de nós na sociedade.
Os tipos de Democracia
As possibilidades reconhecidas são diversas. Direta, indireta, semidireta, representativa, eleitoral, alternativa, participativa, liberal, republicana, deliberativa, e por aí vai. No entanto, independentemente do modelo que se discuta, a base de sustentação da democracia está assente na soberania popular.
A direta se define como a forma de organização social na qual todo e qualquer cidadão pode participar ativamente da tomada de decisões, sendo a maneira direta de exercer a democracia.
De forma inversa, há democracia indireta quando, por meio do voto, representantes fazem escolhas e tomam decisões pela população. Esse conceito se interliga com a democracia representativo-eleitoral apresentada mais à frente.
Hoje, a Suíça é o maior exemplo de uma democracia semidireta no mundo. Essa classificação recebe esse nome pois coexistem dois sistemas políticos: o representativo, com políticos eleitos a trabalhar no parlamento, e o direto, de participação popular no momento de decisão, através de referendos e plebiscitos por exemplo.
A democracia representativa e eleitoral é a delegação do povo do seu poder de decisão a alguns representantes (vereadores, deputados, senadores), por meio das eleições.
A modalidade aleatória e/ou participativa, materializada pelo Tratado de Lisboa, em seus artigos 10º e 11º, confere aos cidadãos o direito de participar da vida democrática da União Europeia. Estipula que as decisões sejam tomadas de forma tão aberta e próxima dos cidadãos quanto possível.
Por fim, de forma a trazer o contexto para a realidade brasileira, a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, parágrafo único, menciona que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Isso significa que há a possibilidade de exercício da democracia participativa no nosso país.
É nesse tipo de democracia que se manifesta e surgem os sorteios cívicos que, nos últimos tempos, têm tido um amplo destaque mundial.
Sorteio como ferramenta cidadã
O contexto de democracia participativa ou alternativa permite que os cidadãos façam política “com as suas próprias mãos”. A deliberação cidadã é uma inovação democrática com grande impacto na sociedade atual, mesmo tendo sido criada e posta em prática na Grécia Antiga.
Por meio de um sorteio (cívico), um grupo de cidadãos é escolhido para debater e deliberar sobre determinada decisão política. Com o apoio técnico de especialistas e ouvindo considerações de diferentes segmentos da sociedade, após diversos encontros, o grupo escolhido apresenta sua decisão, e os argumentos que a embasaram.
É um experimento que propõe corrigir distorções da política institucional, por meio da cooperação, julgamento ponderado, emancipação cidadã e diversidade. É a cidadania como protagonista de decisões políticas.
Ernesto Ganuza e Arantxa Mendiharat, no seu livro “La democracia es posible” de 2020, referem que “dado que nunca antes tivemos tanta informação científica ao nosso dispor e tantos coletivos cidadãos organizados em torno de temas específicos, hoje, a recuperação do sorteio visa reunir informação qualificada e diversificada de especialistas sobre o tema abordado”.
Nesse sentido, o processo acontece da seguinte forma:
Após determinada questão pública ser levantada para deliberação – temas que podem ir de planos de bairro a revisões constitucionais -, organizações como a Sortition Foundation ou o Delibera Brasil são responsáveis por sortear aqueles que participarão. Essa escolha é feita de forma aleatória, dentre a população local diretamente envolvida com a causa pública a ser debatida.
Mas será que todas e todos estarão representados? A resposta é sim. O grupo formado abrange, proporcionalmente, as variáveis gênero, idade, etnia, renda, escolaridade e ocupação. É o bombeiro a debater com o jovem universitário, com a senhora aposentada e com a gestora pública.
Além disso, fatores como diferentes opiniões e crenças em relação à pauta a ser deliberada são determinantes para o sucesso da amostragem. E não se exclui quem não tem interesse no assunto. O importante é a multiplicação de vozes e ideias. Isso porque a democracia real é formada por diferentes pessoas, e exercida por e para elas.
Por outro lado, algumas críticas são apontadas a essa metodologia. Questionamentos sobre a capacidade de o cidadão comum deliberar sobre assuntos públicos específicos, com algum grau de complexidade, é um dos argumentos contra os sorteios para a cidadania.
Nesse sentido, para John Burnheim, em sua obra “Is Democracy Possible? The Alternative to Electoral Politics”, entende-se que “a maior parte das pessoas, se confrontadas com questões concretas limitadas sobre assuntos que as afetam diretamente, são capazes de alcançar uma compreensão suficiente, sobre os temas, para fazer escolhas sensatas”.
Além disso, conforme apontam Ernesto Ganuza e Arantxa Mendiharat “na maioria das vezes, o sorteio cívico hoje não se apresenta como um procedimento que substitui o sistema político contemporâneo, mas é organizado de forma a envolver diretamente os cidadãos na tomada de decisões políticas relevantes para a comunidade”.
E tem sido cada vez mais adotado, inclusive de forma permanente e institucionalizada, em diversas cidades do mundo, servindo como instrumento mediador entre os anseios da população e os representantes eleitos.
Sorteio cívico pelo mundo
No Canadá, por exemplo, em 2015 foi criado o grupo de Revisão do Planejamento de Toronto, com o intuito dos residentes se envolverem nos processos de planejamento urbano da cidade. Composto por um corpo consultivo de 32 membros, este foi formado por residentes selecionados aleatoriamente, via sorteio cívico.
Isso ajudou a garantir que os membros do grupo de Revisão representassem a diversidade da população da cidade, ao mesmo tempo em que ampliou o engajamento ao trazer novas vozes para o processo de planejamento urbano.
Na França, o uso do sorteio foi defendido pelo atual presidente, Emmanuel Macron e por outros quatro candidatos de diferentes posições políticas, ainda em campanha presidencial em 2017. O país instituiu uma Convenção Cidadã com 150 pessoas sorteadas com a finalidade de pensar medidas para a transição energética do país, sendo essa uma demanda dos trabalhadores ‘coletes amarelos’ em 2018.
Já a Islândia (2010-2012) e a Irlanda (2013), tinham a missão de discutir uma nova Constituição e oito artigos do atual documento legal fundador do Estado, respectivamente. Este último país, inclusive, por meio de sorteio e convocação de 99 cidadãos, conseguiu resolver um impasse político de décadas: a legislação sobre o aborto.
O caso da Irlanda parece ter alavancado o que está sendo chamado de “onda deliberativa”. Nem a pandemia foi capaz de a interromper, com várias assembleias e júris cidadãos sendo realizados todo mês, agora virtualmente, ao redor do mundo.
Recentemente, a revista The Economist fez um vídeo sobre essa forma tão antiga, mas ao mesmo tempo tão radicalmente inovadora, de se pensar e fazer a democracia mais próxima do que todos idealizamos.
Numa sociedade dinâmica, em ampla transformação ao longo dos tempos, o paradigma da cidadania está em constante evolução. Afinal, a democracia é um processo, não existindo um modelo “perfeito”.
No entanto, independentemente do tipo que se discuta, a sua base de sustentação democrática é a soberania popular.
Com a atual crise do sistema representativo – cada vez mais distante das demandas de uma sociedade plural, diversa e ampla -, não é de se estranhar que inovações democráticas, como os sorteios cívicos, se façam presentes nos dias de hoje. Não se trata de uma solução milagrosa para todos os “males” da democracia, mas é uma opção a ser considerada.
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Delibera Brasil
Fundado em 2017, o coletivo Delibera Brasil é uma organização sem fins lucrativos e suprapartidária que objetiva contribuir para o fortalecimento e aprofundamento da democracia brasileira, ao promover e viabilizar a deliberação cidadã. Essa nova forma de participação cidadã ajuda governos, lideranças políticas, movimentos, comunidades e coletividades a encaminharem decisões difíceis e complexas, com foco no bem comum por meio de sorteio, minipúblicos e deliberação de soluções para problemas de bairros, regiões, cidades, estados e países.
REFERÊNCIAS
AUAD, Denise; PEDROSA, João C. H.; MARTIMIANO, Maria de Lourdes; TANGANELLI, Rogério F. MECANISMOS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NO BRASIL: PLEBISCITO, REFERENDO E INICIATIVA POPULAR. In Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 3, jan./jun. 2004.
Burnheim, John, ¡s Democracy Possible? The Alternative to Electoral Politics. Berkeley: University of California Press, 1985, p. 1-16.
CAMBI, E. A. S. Processo Constitucional e democracia. In:Clèmerson Merlin Cléve. (Org.). Direito Constitucional Brasileiro. 1° ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, v. 2°, p. 569-590.
Fernandes, António Teixeira (2004), “Democracia, Descentralização e Cidadania”, in
Democracia, Novos Desafios e Novos Horizontes, Oeiras, Celta Editores.
GANUZA, Ernesto; MENDIHARAT, Arantxa. La democracia es posible: sorteo cívico y deliberación para rescatar el poder de la ciudadanía, 1ªed, Bilbao: Consonni, 2020.
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Sorteio vira remédio para males da democracia eleitoral na Bélgica. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/01/sorteio-vira-remedio-para-males-da-democracia-eleitoral-na-belgica.shtml Acesso em 18 de março de 2021.
DEMOCRACIA POR SORTEIO: POR QUE PODE DAR CERTO. Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/democracia-por-sorteio-por-que-pode-dar-certo/
Assembleias criadas por sorteio podem aproximar cidadão das decisões. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/12/assembleias-criadas-por-sorteio-podem-aproximar-cidadao-das-decisoes.shtml
Nexo: A Explosão do sorteio na democracia. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2020/A-explos%C3%A3o-do-sorteio-na-democracia
Toronto Planning Review Panel. Disponível em: https://www.toronto.ca/city-government/planning-development/outreach-engagement/toronto-planning-review-panel/
Delibera Brasil. Disponível em: http://deliberabrasil.org/
The Economist. Citizen deliberation is the gateway to netter politics. Disponível em: https://www.economist.com/open-future/2019/03/11/citizen-deliberation-is-the-gateway-to-a-better-politics
Dicionário Euroogle. Democracia participativa. Disonível em: http://euroogle.com/dicionario.asp?definition=458
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MIGUEL, Luis Felipe. Sorteios e participação democrática. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452000000200005