Você já ouviu falar sobre urbicídio? Desde o início da modernidade (1453-1789), quando os conflitos internacionais passaram a adotar contornos parecidos com os que perduram até a atualidade, as disputas armadas ocorrem principalmente em campos de batalha. Nesse cenário, o vencedor seria aquele que passaria a dominar e comandar o território disputado.
No entanto, nas últimas décadas podemos observar o surgimento de uma nova fase dos confrontos internacionais. Agora, as disputas militares invadem as fronteiras das cidades, atingindo diretamente a paisagem urbana e social que compõem essas localidades.
Esse fenômeno simboliza chegada do urbicídio, uma nova forma de se fazer guerra que tem sido cada vez mais comum no mundo atual.
Pensando nisso, a Politize! vai ajudar você a entender melhor algumas das nuances que formam esse fenômeno político-militar que tem sido utilizado como arma de guerra.
O conceito de Urbicídio: um apanhado geral
O conceito de urbicídio surge não muito distante da nossa realidade atual. Um grupo de arquitetos começa a pensá-lo, em 1994, numa tentativa de explicar para o público geral a extensão do que ocorreu na Guerra da Bósnia (1991-1992).
Durante a exposição “Warchitecture – Urbicide Sarajevo”, os mesmos definiram o que aconteceu na cidade de Sarajevo durante os anos do conflito como um urbicídio, fenômeno marcado pelo desejo de aniquilar essa cidade e o que ela representava para sua população.
Naquele contexto, a cidade simbolizava a síntese da alma do país, com edificações que exprimiam a pluralidade da população, com mesquitas, igrejas ortodoxas e católicas convivendo paralelamente.
A partir dessa exposição, outros estudiosos iniciaram discussões em torno do termo. Atualmente podemos definir o urbicídio como uma forma de violência política que prolifera a destruição do espaço urbano físico e de toda sua interface cultural, por meio de ataque às formas necessárias para a existência citadina.
As características marcantes do urbicídio
Mas, o que difere de fato o urbicídio das outras formas de violência? Para entender melhor essas discrepâncias, nada mais justo do que retornarmos às suas principais características.
Primeiramente, muito diferente do que acontece em outras ações armadas, a principal intenção do urbicídio não é aniquilar um único alvo. As cidades, receptores das grandes investidas urbicídas, representam o suprassumo de todos os fenômenos que o dominador deseja atacar.
Nesse espaço, os diversos grupos sociais estabelecem suas trocas comunitárias, políticas e econômicas, além de construírem os monumentos que representam imageticamente sua identidade. Por essa perspectiva, a cidade condensa a alma de um povo, representa todo o seu passado, seu presente e suas possibilidades futuras.
Com isso, ao objetivar a destruição de monumentos e edificações, o urbicídio visa aniquilar os símbolos identitários de uma população. Mata-se a cidade e o que ela representa, atingindo a identidade e a memória coletiva de determinado povo de maneira profunda e irreversível.
O impacto social desse fenômeno
Ao se observar o cunho social do urbicídio, os impactos vão muito além da extinção de patrimônios e edificações. Quando sofrem as investidas diretas desse fenômeno, além da clara perda de vidas, os indivíduos são colocados sobre um estado de terror constante, sempre imaginando qual será a próxima vítima dessa destruição em massa.
Sob essa condição, as pessoas são forçadas a estar em constante deslocamento, em busca de locais mais seguros para conseguir experienciar alguma forma de cotidiano. A insegurança e os danos psicológicos que essa movimentação recorrente oferece aos indivíduos acaba minando qualquer possibilidade de reorganização social e identitária.
Dessa maneira, o pesquisador Márcio Mendonça (2020) afirma que os impositores da política urbicida conseguem fragilizar e desmontar laços comunitários, apagando o espaço comum e descontinuando as possibilidades de vida mútua das pessoas na cidade.
Os exemplos históricos do urbicídio
Ao pensarmos nessas características do urbicídio, não se torna difícil enumerar uma série de exemplos históricos dessa forma de violência. Na já mencionada cidade de Sarajevo, que deu origem aos debates em torno da temática, as tropas sérvias difundiram a destruição de mesquitas, igrejas católicas e ortodoxas, bibliotecas, prédios históricos e cinemas, numa tentativa de destruir a alma daquela cidade.
Em Aleppo, segunda maior cidade da Síria, os efeitos do urbicídio são sentidos até a atualidade. A disputa entre o governo de Bashar al-Assad e os grupos contrários ao seu regime, que ainda se desenrola em inúmeras vertentes, culminou na eliminação de bibliotecas e monumentos históricos, além de colocar seus habitantes em deslocamento constante. Segundo a ONU (2023), o conflito já obrigou 6 milhões de indivíduos a se movimentarem internamente.
Mas, se trouxermos para uma realidade ainda mais próxima, é impossível não citar o urbicídio que o povo palestino tem sofrido na Faixa de Gaza. Nos últimos anos, os comandos sionistas-israelenses têm trabalhado no desmantelamento dos símbolos palestinos, em uma tentativa de impor seu domínio completo sobre aquela região, expulsando os locais.
Com os ataques do Hamas a alvos israelenses em 2023, essa política de violência se intensificou. Agora, mais do que nunca, bairros inteiros e símbolos nacionais são alvos constantes, enquanto sua população é recorrentemente deslocada dentro dos pouco mais de 360 km² que compõem esse território.
Essas e outras ações criminosas visam minar qualquer possibilidade de um Estado Palestino independente.
Nesses casos, quais as estratégias de recuperação?
Os exemplos descritos acima demonstram parte da gravidade e das dificuldades que o urbicídio provoca. Sob essa ótica, o que resta para as populações vítimas desse fenômeno é tentar implantar estratégias de reconstrução.
Em sua maioria, os mecanismos de restauração adotados nessas cidades buscam não apenas retomar aqueles monumentos e locais destruídos, mas incorporar as feridas dos ataques aos mesmos.
Reordenar as cidades em torno dessas memórias que o urbicídio provoca é uma forma de não esquecer o que aconteceu. É uma estratégia de resistência simbólica que integra as marcas dessa política violenta ao cotidiano dos indivíduos, em um movimento que reafirma as tessituras sociais e identitárias acima de qualquer tentativa de apagamento.
Direito Internacional: uma esperança para a coibição do urbicídio?
Ao apresentar todas essas nuances do urbicídio o questionamento que surge em muitas mentes pode ser: mas onde estão as organizações internacionais para proteger esses indivíduos? Bom, a resposta não é tão simples.
O Direito Internacional, que historicamente rege as relações jurídicas entre as nações e os sujeitos, resolvendo problemas e impasses, é uma área de avanços lentos e burocráticos. Poucas são as ações consideradas pelo mesmo como crimes de guerra, que podem ser julgadas pelo Tribunal Penal Internacional (TPI).
Muitos juristas defendem que o processo de inserção de um novo conceito, como o urbicídio, na legislação internacional, pode gerar confusões e inflações burocráticas, dificultando o trabalho dos organismos que lidam com as consequências dos conflitos internacionais.
Ainda assim, o debate não pode se esgotar tão rapidamente. Para todos os povos e Estados que têm suas cidades, sua identidade e seus saberes vitimados pelo urbicídio, ter essa prática reconhecida internacionalmente como criminosa seria uma forma de dar luz à problemática.
Se considerarmos os exemplos citados acima, ainda é possível observar que essa adoção por parte do Direito Internacional seria uma forma de barrar o curso desse fenômeno.
Essa discussão não será esvaziada tão facilmente, mas é importante que seja cada vez mais posta em prática, para que novas nuances e faces dessa problemática surjam, dando voz às vítimas diretas e indiretas da mesma.
E aí, conseguiu entender um pouco mais sobre o urbicídio? Já conhecia todas as nuances que envolvem esse fenômeno? Conta para a gente nos comentários!
Referências:
- BBC – Aleppo antes da guerra
- ONU News – Guerra na Síria passa pelo pior momento em quatro anos
- Politize! – Guerra civil na Síria
- Politize! – Faixa de Gaza em foco
- Revista Galileu – Destruição de prédios históricos em Gaza é “urbicídio”
- Outras Palavras – O que é o Urbicídio? Uma leitura crítica
- Unsplash – A destruição de Aleppo
- MENDONÇA, Márcio José. Urbicídio: uma Aproximação Temática e Conceitual com o Brasil. Espaço Aberto, Rio de Janeiro, Brasil, v. 10, n. 2, p. 167–184, 2020. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/EspacoAberto/article/view/31590. Acesso em: 19 set. 2024.
- GRAHAM, Stephen. Cidades Sitiadas: O Novo Urbanismo Militar. São Paulo: Boitempo, 2017.
- MENA, Fernando Carrión. Urbicidio o la muerte litúrgica de la ciudad. Oculum Ensaios, [S. l.], v. 15, n. 1, p. 5–12, 2018. Disponível em: https://puccampinas.emnuvens.com.br/oculum/article/view/4103. Acesso em: 20 set. 2024.