Você sabe quem foi Angela Davis e Lélia Gonzalez? Sabe qual é a importância delas para entender as lutas de grupos minoritários em direitos nos Estados Unidos e no Brasil?
Neste artigo, o Politize! introduz essas conversas com você a partir da perspectiva do feminismo interseccional das mulheres negras de Davis, Crenshaw e, no Brasil, Lélia Gonzalez. Três autoras que foram as principais formuladoras do conceito de interseccionalidade.
Primeiro, o que é interseccionalidade?
Kimberlé Crenshaw, teórica formuladora do termo “interseccionalidade”, em Berlim (2019). Foto: Mohamed Badarne. Fonte: Wikimedia Commons.
Há trinta anos, Kimberlé Crenshaw (1959- ), teórica estadunidense e professora de direito da Universidade da Califórnia e da Universidade Columbia, introduziu o termo interseccionalidade nos estudos e mobilizações sociais. Para ela, a interseccionalidade envolvia pensar o “conhecimento situado de mulheres negras”.
Como assim? Em primeiro lugar, significava pensar no local de violência física, psicológica, social, sexual e institucional em que, historicamente, as mulheres negras estão sujeitas por serem mulheres e por serem negras. Em segundo, vislumbrá-las como protagonistas e sujeitas com voz para contar a própria história e os contextos de luta e de resistência.
Ao longo dos anos, o termo se popularizou, expandiu e integrou nas lutas e mobilizações sociais internacionalmente. Assim, atualmente, ele é usado para se referir não apenas as resistências das mulheres negras, mas também para abranger um grupo significativo de pessoas em contextos de marginalização, violência e luta por direitos sociais.
Antes de prosseguirmos, que tal aprendermos mais sobre o termo “interseccionalidade” e como ele está presente em nossa realidade? Leia o artigo do Politize!
Depois de entendermos as origens do conceito de interseccionalidade e como ele se reflete nos movimentos sociais e na academia, vamos conhecer duas grandes teóricas da luta das mulheres negras: Angela Davis e Lélia Gonzalez. Elas, até antes da formalização do termo por Crenshaw, já internalizavam a interseccionalidade em suas pautas. Vamos lá?
Angela Davis: biografia e atuação
Angela Davis, em Montevideo, discursando na Universidad de La República Uruguay sobre o tema “Sem racismo, melhor democracia” (2019). Foto: Mediared. Fonte: Wikimedia Commons.
Angela Davis (1944- ) é uma teórica e ativista estadunidense, nascida no Alabama – estado conhecidamente violento contra populações negras, já que fazia parte do Sul do país, em que a política de segregação racial foi visivelmente intensa. De acordo com dados da BBC, entre 1882 e 1889, a proporção de linchamentos era de 4 pessoas negras para cada pessoa branca, esse número chegou a alcançar 17 para 1, no auge das políticas de segregação.
O que Angela Davis propôs em seus estudos é que não era possível ser feminista, antirracista, anticapitalista OU abolicionista. Mas sim, era necessário possuir um ativismo em todas essas frentes de luta.
Eu não posso ser uma militante antirracista sem pensar na dimensão heteropatriarcal do racismo. Eu não posso ser feminista sem reconhecer o papel que o capitalismo e o racismo tiveram em moldar o patriarcado
Davis, no evento “Democracia em Colapso?”, em São Paulo (2019).
Na década de 1970, Angela Davis fez parte do grupo Panteras Negras nos Estados Unidos e foi integrante do Partido Comunista.
A história de Davis começou a ganhar destaque quando, em agosto de 1970, Jonathan Jackson, outro integrante dos Panteras Negras, invadiu um julgamento e sequestrou o promotor responsável pelo caso. Durante a perseguição policial, em uma troca de tiros entre os policiais, Jackson e o promotor foram baleados e mortos. Acontece que Jonathan Jackson era irmão de George Jackson, um militante que estava preso e que era defendido por Davis. Devido a essa ligação, ela foi perseguida e acusada de posse da arma utilizada por Jonathan Jackson.
Após se manter listada como procurada pelo Departamento Federal de Investigação (FBI, sigla em inglês), Davis foi presa, dois meses depois, em outubro de 1970, em Nova Iorque.
Angela Davis listada pelo FBI como uma das fugitivas mais procuradas dos Estados Unidos. No cartaz lê-se: “Angela Davis é procurada por sequestro e assassinato (…) Ela alegadamente teria comprado várias armas no passado. Considere possivelmente armada e perigosa” (1970). Foto: Departamento Federal de Investigação, Governo dos Estados Unidos. Fonte: Wikimedia Commons.
O processo de julgamento dela durou mais de 18 meses após a prisão. Esse contexto, em que ela foi presa antes do fim da investigação, além da enorme representatividade de Davis na luta antirracista, aliou-se ao crescente de movimentos sociais nos Estados Unidos, sobretudo devido à participação do país na Guerra do Vietnã (1955-1975). Assim, conjuntamente às mobilizações, a libertação de Davis se tornou uma pauta de ativismo por meio da campanha “Libertem Angela Davis”.
Ao final, Davis foi inocentada de todas as acusações. Devido ao histórico de luta e resistência, a enorme repercussão midiática do caso de Davis também trouxe a tona as circunstâncias de segregação contra as populações negras nas cidades estadunidenses. Mais do que isso, Angela Davis se tornou um símbolo de força para o movimento antirracista, sobretudo no contexto das mulheres negras.
Protesto contra a participação dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, em Boston. No cartaz, lê-se: “Libertem Angela Davis! Juventude contra a guerra e o fascismo” (1970). Foto: Nicholas DeWolf. Fonte: Wikimedia Commons.
Vale destacar que a atuação de Davis não se restringiu apenas aos movimentos sociais antirracistas e à política. Hoje, ela é considerada uma das teóricas mais importantes para o feminismo das mulheres negras e uma das primeiras autoras a abordar a interseccionalidade.
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Mulheres, Raça e Classe
Sua obra mais famosa Mulheres, Raça e Classe (1981) aborda exatamente a intersecção entre nuances de violência existentes entre ser mulher, negra e periférica. No livro, também é discutida uma crítica ao movimento operário e feminista, por não contemplar a perspectiva racial e, também, às insuficiências do movimento antiescravagista, por não contemplarem a perspectiva de gênero . De acordo com as palavras dela:
O fato de que uma mulher branca associada ao movimento antiescravagista pudesse adotar tal postura racista contra uma menina negra no Norte refletia uma enorme fraqueza da campanha abolicionista: seu fracasso em promover uma ampla conscientização antirracista. (DAVIS, 1981)
Para a estruturação de sua obra, Davis situou as mulheres negras estadunidenses em um primeiro momento no contexto da escravidão. A partir disso, a autora desenvolve o histórico de opressão até as circunstâncias da atualidade. Assim, a autora também demonstra a violência da própria academia, a qual estudava a separação “selvagens” e “civilizados” no contexto da escravidão do Sul dos Estados Unidos, mas não se debruçavam com a mesma intensidade para compreender as especificidades de corpos de mulheres escravas.
De tal forma, em seus estudos, Davis expos como teóricos também reproduziam estereótipos e opressões. A partir da observação de discussões sobre”promiscuidade sexual” e “pendores” das mulheres negras e escravas, por exemplo, Davis argumentava que se o sistema escravocrata já definia a população negra como propriedade, ele soma-se ao sistema machista em que as mulheres negras eram as propriedades cuja posse se configura em sua brutalidade maximizada. Isso porque, além de serem definidas como unidades de trabalho lucrativas pelos proprietários de escravos, Davis explica que elas eram desprovidas de gênero, já que compartilhavam dos mesmos estigmas que os homens. No entanto, ao mesmo tempo, o peso era maior quando o gênero também adentrava como categoria de violência, na qual, para o sistema escravocrata, a mulher negra era também um corpo vulnerável à coerção sexual.
As discussões incessantes sobre sua “promiscuidade sexual” ou seus pendores “matriarcais” obscureciam, mais do que iluminavam, a situação das mulheres negras durante a escravidão. Ainda assim, como as observações que ele faz sobre as mulheres escravas são geralmente elaboradas para confirmar que elas tinham uma propensão a se tornarem esposas, fica fácil extrair disso a implicação de que elas se diferenciavam de suas congêneres brancas apenas na medida em que suas aspirações domésticas eram frustradas pelas exigências do sistema escravocrata. (DAVIS, 1981)
Diante desse histórico, Davis contextualizou como as mulheres foram frequentemente deixadas de lado por movimentos antiescravagistas, por não verem a representação de suas subjetividades de resistência em relação às violências de gênero. A autora relata, por exemplo, que apenas quatro mulheres foram convidadas a participar da convenção de fundação da Sociedade Antiescravagista Estadunidense, em 1833. Contudo, Davis ressalta que no interior do movimento antiescravagista, as mulheres conseguiram questionar e desafiar a supremacia masculina.
A partir da abolição da escravidão, em sua obra, Davis contextualizou as heranças estruturais do sistema escravista – todas relacionadas com a questão do trabalho. Um exemplo da autora é de quando a população começou a migrar para o Norte; mesmo fora do Sul escravista, as relações de trabalho não eram muito diferentes na medida em que as populações negras começaram a ser vistas como potencial mão de obra. E no caso das mulheres negras, mão de obra doméstica.
Diante disso, a autora relatou a existência de mercados em Nova Iorque nos quais mulheres brancas selecionavam mulheres negras em busca de emprego para atuarem no trabalho doméstico como uma releitura das praças de leilões de escravos.
O racismo funciona de modo intrincado. As empregadoras que acreditavam estar
elogiando as pessoas negras ao afirmar preferi-las em relação às brancas argumentavam, na verdade, que as pessoas negras estavam destinadas a ser serviçais domésticas – escravas, para ser franca. Outra empregadora descreveu sua cozinheira como “muito esforçada e cuidadosa – meticulosa. Ela é uma criatura boa, fiel e muito agradecida”. Claro, a “boa” serviçal é sempre fiel, confiável e agradecida. A literatura dos Estados Unidos e os meios de comunicação populares no país fornecem numerosos estereótipos da mulher negra como serviçal resistente e confiável. (DAVIS, 1981)
Depois de conhecer um pouco da vida e obra de Davis, convidamos vocês para conhecerem um pouco mais sobre uma importante autora do nosso país. Se nos Estados Unidos, Angela Davis é um exemplo de teórica e ativista pelo movimento feminista negro e pela abordagem interseccional que tem em Gênero, Raça e Classe (1981), no Brasil, Davis exalta Lélia Gonzalez como uma referência. Vamos conhecê-la, então?
Lélia Gonzalez e a “Amefricanidade”
Lélia Gonzalez, em 1989. Foto: Cezar Loureiro, Revista Cult. Fonte: Wikimedia Commons.
Lélia Gonzalez (1935-1994) foi professora, antropóloga e política brasileira nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais. Atualmente, é considerada uma das teóricas brasileiras mais importantes, sendo reconhecida pelo histórico intelectual e ativista, e pela proposição de um estudo que abrangesse uma teoria afro-latino-americana do feminismo, a Amefricanidade.
Cabe aqui um dado importante da nossa realidade histórica: para nós, amefricanas do Brasil e de outros países da região – assim como para as ameríndias – a conscientização da opressão ocorre, antes de qualquer coisa, pelo racial. Exploração de classe e discriminação racial constituem os elementos básicos da luta comum de homens e mulheres pertencentes a uma etnia subordinada. (GONZALEZ, 1988)
A interseccionalidade do pensamento de Gonzalez é advindo não apenas da Amefricanidade, como também pela própria trajetória de vida da autora. Ela é mulher, negra, com descendência indígena e filha de um operário e uma empregada doméstica. Junto ao trabalho como acadêmica, atuou na política por meio da formulação da Constituição de 1988; no Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e fez parte do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e da formação do Partido dos Trabalhadores (PT).
Por que vocês precisam buscar uma referência nos Estados Unidos? Eu aprendo mais com Lélia Gonzalez do que vocês comigo.
Angela Davis sobre Lélia Gonzalez, em coletiva de imprensa, no Auditório Ibirapuera, São Paulo (2019).
Inauguração do edifício Lélia Gonzalez, da Organização das Nações Unidas (ONU), em Brasília (2015). Foto: Fábio Donato, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD Brasil). Fonte: Wikimedia Commons.
Além da abordagem de gênero e etnia, a crítica de Gonzalez é também direcionada à própria academia por essa ser construída com base em autores homens e europeus. Nesse sentido, a autora é transgressora em obras, mas também na própria forma com que buscava construir sua própria marca no mundo acadêmico. Assim, tornou-se conhecida pela abordagem da psicanálise de Jung, Lacan e Freud, mas também pelo candomblé e pela crítica aos intelectuais negros paulistas que, de acordo com ela, “já leram Marx e Gramsci”, mas “não sabem o que é axé”.
Ler Lélia Gonzalez, significa ler a interseccionalidade das lutas das populações negras em âmbito nacional e transnacional. Isso porque a Amefricanidade contextualizada por ela envolve não apenas a diáspora africana à América Latina, como também a vivência conjunta do que é ser latino-americana e africana e latino-americano e africano. Isto é, a unidade histórica, cultural e de resistência existente entre mulheres e homens da América Latina, América do Norte, Caribe e África Atlântica.
Evidentemente que a intersecção entre América Latina e África adentra também o gênero para a teórica. Por isso, ao escrever sobre as mulheres não brancas, com enfoque nas mulheres negras, Gonzalez denunciava a dominação por meio da falta de protagonismo delas nas próprias lutas e histórias, das quais elas são “faladas”, “definidas” e “classificadas”.
Diante disso, o embate e a luta de Lélia Gonzalez na política e na academia foram insistentes em levar as vivências das mulheres negras enquanto mulheres negras. Isto é, com todas as violências, mas também com as resistências cotidianas do que significa ser mulher negra no Brasil.
Por fim, além disso, em suas obras, Gonzalez também buscou criticar a visão de que o Brasil havia superado o racismo. Para exemplificar seu ponto de vista, Gonzalez utilizou de situações do dia a dia – como, por exemplo, relação entre a imagem da mulher negra no Carnaval e a imagem dela no cotidiano; se no Carnaval a mulher negra é exaltada, no cotidiano ela se transfigura na empregada doméstica e sofre com uma violência sistêmica.
Para saber mais sobre o feminismo negro no Brasil, leia também o artigo escrito pelo Politize!
Atualmente, Angela Davis e Lélia Gonzalez são consideradas duas grandes teóricas sobre o feminismo negro. Para saber mais sobre o tema, leia também o artigo escrito pelo Politize!
REFERÊNCIAS
Cláudia Cardoso: Amefricanizando o feminismo: o pensamento de Lélia Gonzalez
Angela Davis. Gênero, Raça e Classe.
Lélia Gonzalez: Por um feminismo afro-latino-americano
Carta Capital: ferramenta anticolonial