Em 2023, os argentinos foram às urnas para escolher um novo presidente. O vencedor das eleições no país vizinho foi Javier Milei, candidato antissistema e defensor do libertarianismo. Com a vitória dessa figura polêmica, a Argentina se tornou o primeiro país do mundo a possuir um chefe de Estado declaradamente anarcocapitalista.
Mas o que levou esse outsider a alcançar uma votação tão expressiva? Quais eram os principais candidatos e suas propostas? Como funciona o sistema eleitoral argentino? Siga com a Politize! para saber!
A economia e a política na Argentina antes das eleições
A Argentina chegou a figurar entre os 10 países mais ricos do mundo entre o fim do século XIX e o início do século XX. À época, seu PIB per capita era superior ao de nações como França, Itália e Alemanha. Contudo, ao longo dos anos, o país sul-americano enfrentou uma série de problemas econômicos e hoje ocupa apenas a 66ª posição no ranking global de riqueza.
A política argentina também é marcada pela instabilidade e pelas crises. A nação viveu 6 golpes de Estado no último século, 2 dos quais resultaram em ditaduras militares.
Uma das forças políticas mais influentes no país é o peronismo, que surgiu com o presidente Juan Domingo Perón (1946-1955 e 1973-1974) e já abrigou lideranças de diferentes ideologias, da esquerda à direita.
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A Argentina no século XXI
O kirchnerismo, braço peronista com características progressistas, foi dominante na Argentina durante boa parte do século XXI. O nome dessa corrente vem dos presidentes Néstor Kirchner (2003-2007) e Cristina Kirchner (2007-2015). Suas administrações ficaram marcadas pelos programas sociais e pelo fortalecimento da presença do Estado na economia.
Durante seus anos iniciais no poder, houve redução nas taxas de pobreza e de desemprego, o que rendeu ao casal uma alta aprovação popular. Por outro lado, opositores apontavam traços como populismo, clientelismo e personalismo na política kirchnerista.
Porém, ao final do segundo mandato de Cristina Kirchner, a situação econômica do país piorou e surgiram denúncias de corrupção no governo. Com a popularidade em baixa, a presidente não foi capaz de eleger seu sucessor, Daniel Scioli. O vencedor das eleições de 2015 foi o oposicionista Mauricio Macri, de centro-direita.
Apesar do otimismo inicial dos investidores com suas reformas pró-mercado, Macri não conseguiu reverter a estagnação econômica. Por isso, embora tenha sido o primeiro não peronista em mais de 70 anos a concluir o mandato, também foi o único presidente argentino a perder uma disputa de reeleição.
O peronismo voltou ao poder em 2019, representado por Alberto Fernández, com Cristina Kirchner como vice-presidente. Fernández deu uma nova guinada intervencionista, mas suas medidas tampouco levaram à melhora do quadro econômico.
No fim do mandato, às vésperas do segundo turno das eleições de 2023, a inflação anual ultrapassava 140% e a pobreza atingia 40% dos argentinos. O ápice da deterioração econômica levou a desaprovação do presidente a superar 80%, segundo uma pesquisa da Universidade de San Andrés.
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Como funciona o sistema eleitoral argentino?
Agora que conhecemos o contexto socioeconômico argentino, veremos com mais detalhes como foi o pleito de 2023. Para isso, é importante primeiro entender o funcionamento do sistema eleitoral do país.
O voto e as primárias na Argentina
Assim como no Brasil, o voto na Argentina é obrigatório para pessoas de 18 a 70 anos e facultativo para os maiores de 70, bem como para aqueles acima de 16 e abaixo de 18. Uma diferença em relação ao sistema brasileiro é que o país vizinho possui eleições primárias – as chamadas Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias (Paso).
Além de funcionarem como uma espécie de termômetro eleitoral, as Paso possuem dois principais propósitos:
- Eliminar partidos nanicos, já que é necessário atingir ao menos 1,5% dos votos para concorrer à presidência.
- Definir a candidatura nas coalizões com mais de um pré-candidato.
Como determinar o vencedor das eleições?
Encerradas as prévias, há um prazo para a formalização das inscrições e inicia-se a campanha eleitoral. Vence as eleições presidenciais em primeiro turno aquele que:
- Obtiver ao menos 45% dos votos válidos;
- Obtiver ao menos 40% dos votos válidos, com uma vantagem igual ou superior a 10 pontos percentuais do segundo colocado.
Caso nenhuma dessas situações ocorra, realiza-se um segundo turno entre os dois mais votados.
Resultado das Paso em 2023
Em 2023, as Paso ocorreram no dia 13 de agosto, cerca de dois meses antes do primeiro turno, disputado em 22 de outubro. Seus resultados consolidaram as três principais candidaturas à presidência da Argentina:
- Javier Milei, da coalizão de direita La Libertad Avanza, com 29,86% dos votos.
- Sergio Massa, com 21,43% dos votos, da coalizão peronista Unión por la Patria, que obteve 27,28% dos votos no total.
- Patricia Bullrich, com 16,81% dos votos, da coalizão de centro-direita Juntos por el Cambio, que obteve 28% dos votos no total.
Vejamos quem são e o que pensam esses candidatos.
Quem são e quais foram as propostas dos principais candidatos
Javier Milei
Javier Milei é um economista que defende uma versão radical do liberalismo econômico. Muitos o descrevem como populista de direita, por conta de semelhanças com líderes como Jair Bolsonaro e Donald Trump.
Figura excêntrica, Milei ganhou notoriedade ao participar de programas de TV criticando os governos de Cristina Kirchner, Mauricio Macri e Alberto Fernández. Uma de suas marcas é o discurso estridente e raivoso contra aquilo que chama de “casta política”.
Com uma retórica antissistema, o economista foi eleito deputado em 2021. Sua coalizão obteve uma votação expressiva na cidade de Buenos Aires, o que viabilizou sua candidatura à presidência em 2023, apesar da falta de experiência política.
Na campanha, Milei utilizou o slogan “Viva la libertad, carajo!” e propôs medidas duras para enfrentar a inflação. Entre elas estava um corte drástico nas despesas públicas, visando realizar um ajuste fiscal que eliminasse a necessidade de emissão monetária.
Além disso, o outsider prometeu privatizar empresas públicas e reduzir o tamanho do Estado, diminuindo o número de ministérios para apenas 8. Duas de suas propostas mais polêmicas foram o fechamento do banco central do país e a dolarização da economia.
Sergio Massa
Sergio Massa é um político argentino experiente que ora esteve mais próximo do kirchnerismo, ora mais distante dele. O peronista chegou a ser chefe de gabinete de Cristina Kirchner entre 2008 e 2009, mas se afastou dela em 2013, quando fundou o partido Frente Renovadora. Em 2015, concorreu à presidência, terminando em 3° lugar.
Nas eleições seguintes, Massa voltou a figurar ao lado da ex-presidente, então candidata à vice-presidência, concorrendo a deputado como primeiro da lista de sua coalizão (na Argentina, o voto proporcional é em lista fechada). Durante o governo Fernández, o político presidiu a Câmara até julho de 2022 e, em seguida, foi ministro da Economia até dezembro de 2023.
Por ser visto como uma figura mais moderada, Massa foi escolhido para representar o campo do peronismo nas eleições. Mesmo sendo governista, ele tentou novamente se afastar do kirchnerismo, afirmando que a ex-presidente não teria cargos em sua eventual administração.
Entre suas principais propostas estavam a renegociação de dívidas, envolvendo um amplo acordo com credores para garantir um crescimento inclusivo, e o combate à inflação, mediante a recuperação das exportações. O prometeu ainda fazer um governo de “união nacional” entre empresários, trabalhadores e representantes de outros segmentos sociais.
Patricia Bullrich
Patricia Bullrich também é uma figura com vasta experiência na política argentina. Durante a juventude, militou ao lado do peronismo, mas desiludiu-se com a esquerda e passou a assumir posicionamentos mais conservadores.
Bullrich foi deputada de 1993 a 1997 e de 2007 a 2015. Após atuar na Câmara, tornou-se ministra da Segurança de Mauricio Macri. Em 2020, chegou à presidência do partido Proposta Republicana, fundado por Macri em 2005.
A vitória sobre o prefeito de Buenos Aires Horacio Larreta nas Paso garantiu sua vaga como representante do grupo antikirchnerista de centro-direita na disputa pela Casa Rosada.
A candidata defendeu em sua campanha um ajuste fiscal para controlar a inflação e uma política econômica pró-mercado, porém mais moderada do que a de Milei, a quem criticou pelas propostas de dolarização e fim do banco central. Bullrich também ficou conhecida como “candidata da lei e da ordem” por defender medidas mais duras no campo da segurança pública.
Resultados das eleições
No primeiro turno, Massa teve um resultado acima do esperado. O candidato peronista terminou em 1°, com 36,68% dos votos. Milei ficou em 2°, com 29,98%, votação muito próxima da obtida nas Paso. Bullrich ficou em 3°, com 23,83% dos votos e decidiu apoiar o candidato da direita no segundo turno para impedir o que chamou de “perigo do kirchnerismo”.
Segundo Turno
Com a corrida reduzida a dois candidatos, a campanha de Massa procurou explorar medos do eleitorado em relação ao adversário, sugerindo que ele cortaria subsídios e programas sociais e comparando-o a Bolsonaro.
As propagandas eleitorais também atacaram falas polêmicas de Milei, como sua afirmação de que a venda de órgãos seria “apenas mais um mercado” e sua declaração de que Margaret Thatcher foi uma grande líder. A ex-primeira-ministra britânica é mal vista por muitos argentinos devido à Guerra das Malvinas, episódio traumático na história do país.
O postulante de direita à Casa Rosada, por outro lado, tentou moderar o discurso para driblar a rejeição às suas propostas mais radicais e buscar eleitores moderados insatisfeitos com a gestão econômica do oponente. Às vésperas da votação, o libertário era apontado como favorito nas pesquisas, mas liderava por uma margem apertada.
No dia 19 de novembro de 2023, Javier Milei confirmou o favoritismo, tornando-se o 52° presidente da Argentina. Sua vantagem, no entanto, foi expressiva: 55,65% dos votos, contra 44,35% de Sergio Massa, o que demonstrou o anseio de grande parte dos argentinos por uma mudança mais profunda nos rumos da nação.
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Início do governo Milei
A posse do novo presidente
Em 10 de dezembro de 2023, ocorreu a posse do presidente recém-eleito. Estiveram presentes diversos chefes e ex-chefes de Estado e de governo, muitos deles de direita, incluindo o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi convidado, mas não compareceu, enviando em seu lugar Mauro Vieira, ministro das Relações Exteriores.
Em seu discurso, Milei destacou os problemas econômicos e disse que nenhum outro governo recebeu uma herança tão ruim. O libertário defendeu um “choque”, afirmando não haver alternativa a um duro ajuste fiscal.
Embora tenha admitido que o país viverá um momento difícil a curto prazo, com crescimento da inflação e a pobreza durante algum tempo, argumentou que a medida é a única capaz de levar à superação dos problemas enfrentados.
Primeiras medidas do governo
Logo no início do mandato, Milei começou a colocar em prática sua “terapia de choque”. Veja algumas das medidas adotadas:
- Redução no número de ministérios (de 19 para 9) e de secretarias (de 106 para 54);
- Não renovação do contrato de funcionários públicos recém-admitidos;
- Redução no valor dos repasses às províncias;
- Fim das licitações para obras públicas e cancelamento daquelas que foram licitadas, mas não executadas;
- Redução dos subsídios para energia e transporte;
- Desvalorização do peso argentino;
- Aumento no valor de auxílios ligados a programas sociais para atenuar os efeitos do choque.
Conforme o esperado, o ajuste tem causado um forte impacto socioeconômico. Em dezembro de 2023, a atividade econômica caiu 3,1% em relação ao mês anterior, a maior queda desde abril de 2020. A pobreza, por sua vez, subiu de 45% para 57% em cerca de um mês.
Por outro lado, o governo atingiu o primeiro superávit mensal em mais de uma década e a inflação desacelerou, fechando o primeiro mês de 2024 em 20,6%, contra 25,5% no último mês do ano passado. Ainda assim, ela segue elevada, alcançando uma taxa anual de 254,2%.
Relação com o Congresso e perspectivas futuras
Embora seja muito cedo para prever os efeitos das medidas de Milei no longo prazo, uma coisa é certa: dificilmente ele conseguirá implementar todos os pontos de seu plano econômico. Uma vez que sua coalizão conta apenas com cerca de 15% dos deputados e 10% dos senadores, ela precisará realizar concessões para que suas propostas sejam aprovadas.
Por ora, o governo conseguiu aprovar no Congresso o estado de emergência em matéria econômica, financeira, tarifária e em outras áreas, o que dá mais poderes ao Executivo. No entanto, o presidente sofreu um revés quando a chamada “Lei Ônibus”, que consiste em um grande pacote de medidas econômicas, retornou à fase inicial de tramitação na Câmara.
E aí, o que mais te interessou nas eleições do nosso país vizinho? Como você acha que será a Argentina de Milei? Conte-nos nos comentários!
Referências
- BBC News Brasil: Eleições argentinas: quando começou a derrocada econômica da Argentina – e quão rica ela já foi?
- BBC News Brasil: O que é peronismo e por que continua decisivo na Argentina
- Folha de S. Paulo: Quem é Sergio Massa, o ministro da crise que quer virar presidente da Argentina
- InfoMoney: A crise na Argentina em 5 pontos – e os desafios que Milei encontrará como presidente
- Poder 360: Leia as propostas dos presidenciáveis da Argentina para a economia